quarta-feira, 1 de abril de 2015

Surveiller et Punir I

    Vigiar e punir. É assim que começaremos essa reflexão, que lançarei por etapas, para não se tornar fatigante. Assumo aqui que esse texto não será estático e trata-se de uma linha de pensamento, quase como um diário de bordo do que se passar pela minha mente nos próximos tempos.
    Vigiar e punir, como já escreveu Focault, no tratado "nascimento da prisão", corresponde ao sistema empregado em nossa era moderna nas mais diversas instituições, da escola à prisão. Atendemos todos a um conjunto de normativas, normas de sensos, leis que devem ser seguidas às riscas, a fim de obter-se um sistema ordenado e funcional e suas hierarquias serem mantidas.
    Para que tal status seja mantido, entretanto, como dito n'A República, de Platão, bem como na obra Do Contrato Social, de Rousseau (uns 2500 anos de diferença, entre eles), é necessário que o cidadão faça parte da sociedade - e para isso, abdica-se de certas liberdades e individualidades, para obter as vantagens de se viver em uma sociedade estabelecida. A situação problema é que nenhum cidadão vivente, nos dias de hoje, opta por participar ou não da sociedade. Ele apenas a vive, nascido imerso em todo um contexto milenar, sem a real interpretação do que é ser um cidadão ou de quais liberdades se está disposto a abandonar, tais quais os benefícios compartilhados pelo todo.
    E a mais natural ordem, a partir da situação onde se tem um ponto de incômodo ou discordante, que tal cidadão se rebele. Ainda mais quando alguns destes pontos de ordenação desfavorecem o indivíduo em questão. Mas a ordem precisa ser mantida para a manutenção do sistema.

   A partir dessa divergência de interesses e necessidades, surgiu o conceito de vigiar e punir. As instituições vigiam os indivíduos dela integrantes e os punem caso descumpram regras. Sanções das mais diversas. Das brandas às mais severas. Exemplificando pelas instituições de ensino, desde a mais tenra idade: quando a criança desafia o padrão proposto pelo pedagogo, esta é repreendida de maneira violenta, seja por um cenho franzido ou advertência verbal - em casos extremos, a criança é levada à corte suprema e última instância: a mãe. Mesmo que tal desvio de comportamento seja benéfico à criança, como por exemplo a interação desta primeira com uma colega de sala, desenvolvendo linguagem própria e meios de propor um convívio estabelecido pelas duas crianças, estas serão repreendidas por fugirem ao padrão proposto, engessado.
    Um caso mais severo pode ser elencado como o sistema prisional, onde o indivíduo, vigiado pela sociedade, é punido ao cometer algum crime, seja este qual for, com o estigma da perda da liberdade e o encarceramento. Ou em alguns nichos específicos, certos crimes são passíveis de punições ainda mais bárbaras, como amputação de membros, a pena de pagar com sua própria vida, ou o mais extremo caso, onde a pessoa é condenada a pagar por toda a eternidade, numa condição de sofrimento absoluto - proposição fictícia, religiosa, mas até hoje amplamente aplicada - afinal, ninguém quer ir para o inferno.

    Descrito o sistema de punição, de mais fácil entendimento, passamos ao ato de vigiar. Como se dá essa vigilância? O conceito é complexo. O sistema necessitaria de indivíduos de extrema idoneidade e que conhecessem todas as normais sociais para serem vigilantes, policiadores e juízes de todos em volta, durante tempo integral. A mão de obra empregada nesse sistema seria muito grande e estariam sujeitos à variâncias de interpretações e de influências.
    Acho que o sistema de vigilância, como proposto por Platão (não nos termos de vigilância, mas uma primeira ponderação), se tratou da relação homens e seres superiores, onde um humano seria observado por deuses do panteão e devidamente punido por seus atos contra tais deuses. Mas os deuses greco-romanos tinham índole humana e eram passíveis de subornos, como orações, presentes ou o próprio sexo. Com o desenvolvimento do monoteísmo cristão (e islâmico), esse advento duma entidade superior onipresente, onisciente e onipotente criou a situação onde o indivíduo é sujeito à monitoração integral em todos aspectos de sua vida e sujeito ao inferno, em caso de desvio de conduta. E aí temos que essa primeira vigilância submeteu a sociedade à religião. E criou-se o sistema panóptico (pan - muitos // ópticos-olhos), onde Deus estaria em vigília constante.

    Com a perda do poderio da religião, muito pelo avanço da ciência, decaimento do misticismo e ascensão da classe burguesa, lá pelo fim do feudalismo, fim da idade média, a religião espalhou duramente na sociedade a ética religiosa, e passamos a ser nossos próprios vigias. Cada indivíduo observando o outro e buscando seus erros, para uma exposição social daquele que comete erro. Tornou-se o "pecador", o "herege". E isso foi carregado por mais de meio milênio, e até hoje temos uma densa metodologia de panopticismo religioso.
    Mas a religião não tardou para perder seu poder sobre os indivíduos, cada vez mais rebeldes presos em uma série de condutas dogmáticas, e com o atual grau de desenvolvimento da tecnologia, esse panopticismo foi se desenvolvendo ao ponto de termos câmeras nos vigiando. Celulares nos rastreando. E nós, na inocência, expondo nossas vidas, como se fosse algo divertido e correto, ao mundo todo, a partir de redes sociais. Nós estamos fornecendo insumos para sermos fiscalizados.


Parte II (na próxima postagem): o sistema punitivo e sua eficácia.