domingo, 5 de outubro de 2014

A esquerda e o Brasil

    O PT errou. Essas eleições nacionais são a prova incontestáveis desse panorama.
    A esquerda do Brasil falhou. O PT falhou junto com ela - ou fez ela falir.
    Dentre muitos anos, a esquerda no país foi se construindo, pautada no desenvolvimento de um contra-sistema, sempre buscando as demandas dos trabalhadores e pobres. Com a chegada do PT ao poder, na era Lula, houve uma acomodação da esquerda. Os líderes desta esquerda nacional foram, então, absorvidos pelo aparelhamento do serviço público - se tornaram governistas, e os movimentos sociais foram dissociados e enfraquecidos.
    A esquerda é constituída por movimentos sociais, que são nada mais do que as pautas daqueles que sofrem com a opressão do sistema, e se organizam para realizar defesas. Tendo suas lideranças dentro do próprio sistema opressor, enfraquecem e desestruturam totalmente tais pautas, a base dos movimentos se perde. E assim a esquerda brasileira findou.
    Findou ao se associar com todo gênero de capitalistas, afim de se manter na posição de governista. É cômodo estar na posição de governista, onde tem-se respaldo e arrogância para refutar, ainda que falaciosamente, e colocando-se em posição de superioridade inatingível. Neste processo para manutenção do status de poder, atrelou-se a corja de capitalistas das piores estirpes, como ruralistas e industriais anti-ecológicos. Entretanto, pela defesa de movimentos sociais vai-se de encontro aos interesses de tais financiadores, que, barões e donos de capitanias hereditárias virtuais, trabalharam em ceifar a imagem do partido, a ponto do tratamento midiático sobre corrupção ser a principal pauta de todo um plano de governo da então oposição - que vai subir.

    Conforme o PT desestruturou-se como esquerda, surgem novos partidos no cenário nacional com propostas similares às origens deste partido, como PSOL, PSTU, PCB, PCO. Entretanto, pautam-se numa esquerda intelectualizada e acreditam que uma teoria de esquerda e uma militância burguesa e elitizada intelectualmente, que não dá voz ao trabalhador. Fixa-se em centros universitários e não dialoga com o trabalhador. Não se constrói pelas reais demandas de necessidades do trabalhador, mas tomam para si as pautas progressistas que, embora estritamente necessárias, não atendem às mais básicas necessidades, como dar um teto ou um lar ao trabalhador. Esperam que, como em teoria, haja revolução a partir de um momento de dificuldade. Falam em sentimento de classe, sem que estes mesmos pertençam a classe do proletariado. Falharam em falar a língua do povo.
   O PT também falhou em criar o sentimento de classe de proletariado. Empoderou financeiramente o trabalhador e esperou que pela estabilização econômica, gerasse a classe trabalhadora, ignorando-se a conjuntura atual, onde o possuir, o consumir são mais importantes que o pertencer a um grupo ou ser parte de algo. O indivíduo torna-se maior que o grupo e a individualização, o possuir mais e mais é o diferencial e o importante ao ser. Erramos em deixar a CNB tomar conta do governo, essa corrente ideológica composta por muitos oportunistas de situação governista.

    Temos a bancada mais conservadora, rançosa, retrógrada do século. E uma esquerda nacional desestruturada. Um estado de São Paulo onde até o Suplicy, o senador vitalício, foi derrubado. E todos estamos perdidos - e não sabemos para onde correr. Qual o próximo passo? Quem vai dar o primeiro passo para a revolução, e como será dado?

   Será que agora há uma união da esquerda nacional?

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Aos machos de esquerda (uma dica rápida sobre feminismo exclusiva para você, homem!!!):

Aos machos de esquerda (uma dica rápida sobre feminismo para você, homem!!!):
Sabe quando aquela mina radfem, ou qualquer feminista vira pra você e fala que não tem que "explicar porra nenhuma pra macho"?
Isso te incomoda, bróder?
Sabe quando ela diz que você não pode ser militante feminista? Isso te incomoda, bróder?
Sabe quando a feminista fala que você não vai entender isso, então não adianta explicar, porque você nunca vai conseguir fazer?
Você diz que é feminista e elas dizem que não. Isso te incomoda, bróder?
Pois é. Vez ou outra eu fico ressabiado com isso. Algumas vezes já fiquei com uma mistura de raiva, de tristeza, de inconformismo, de... sei lá, muita coisa. Ainda sinto isso, embora venha se reduzindo.
Você, moço da esquerda, que diz que "feminismo não é isso, feminismo é sobre igualdade" mimimi - você tá sendo, na real, bem bobo (pra não usar um termo mais ofensivo). Sabe por quê?
Quantas vezes você já viu alguém dizendo que "fez cagada no volante? É mulher!", ou "sai daqui, fulana, isso é conversa de homem", ou "você não pode fazer isso, é coisa de menino"? Eu ouço isso o tempo todo, vejo coisas assim acontecendo em todos os momentos, em todas as classes sociais, com todas as mulheres que vejo. É um SISTEMA inteiro voltado a oprimir e subjugar as mulheres. Isso é opressão. Você não poder fazer parte do feminismo não e opressão, cara, é só uma opção delas e fodac.
O TEMPO INTEIRO TEM UM (ou mais) CARA incapacitando a mulher, excluindo a mulher, desqualificando, objetificando a muierada toda.
Então se feminismo é sobre igualdade, elas só tão buscando a igualdade, porra! Igualdade de poder ter os espaços próprios. Se vc quer invadir, vc já tá indo contra seu próprio discurso sobre buscar igualdade.
E mais: se tá incomodando, tem um motivo: elas tão se empoderando, elas estão ganhando poder, elas estão ganhando um espaço SÓ delas.
Você, homem, que quer contribuir pro feminismo: você não pode ser militante porque você não vivencia a opressão, você não sabe quando tá sendo opressor. Por mais que nós sejamos machos beta, épsolon, gama, ômega zeta, ainda somos macho. Podemos chupar xoxotas. Ou pipis. Ou os dois. Mas ainda somos MACHOS e por isso somos seres construídos pra sermos opressores e subjugadores de mulheres. É um sistema de mais de 2 mil anos traçando o melhor jeito possível pra inferiorizar as mulheres nas mais diversas situações possíveis.
Quer fazer algo que presta? Desconstrua seu machismo. Não é fácil. Por mais que tentemos, sempre teremos algumas raízes machistas. Sempre teremos traços de comportamentos machistas, por menores que sejam.
E se vc faz isso: cara, vc não merece palmas, você só tá sendo ético. E seguindo a filosofia da esquerda, onde não há diferenciamento de tratamento das pessoas, ñ importando por quais motivos sejam.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Parabéns, é um menino!

    E se beijaram, e despiram-se. E treparam, de todos os jeitos possíveis. E ele gozou.
    A menstruação atrasou. Uma semana. Duas. Três. O teste - ela estava grávida. Três meses passam, e o ultrassom. Ginecologista disse: parabéns, é um menino!
    Pai já se apressou: vai ser corinthiano! E trataram de enxovalhar o feto. Blusas, casaquinhos, toucas, coletes, suéteres, cachecóis. Azuis, brancos, verdes, amarelos, no máximo. Cor de macho. Vai ser boleiro, vai jogar bola. Ou piloto. Agora que tá mais na moda, por que não lutador de MMA?
    Nasceu, 41 semanas, ficou uma a mais ali dentro, pra ganhar peso. 3,850kg, um tourinho. Era o maior bebê do quarto, o mais forte, o maior. Ricardo, pra nunca ser corno, ser sempre o Ricardão. Foi o que o pai escolheu, em homenagem ao avô, que foi pracinha na segunda guerra, aquele era cabra macho.
    Foi pra casa, no seu quarto azul, e já ganhou um carrinho de pelúcia. "Ele vai namorar a filha da Maria e a filha da Zulmira, e vai ser o Ricardão da filha da Joana, vai ser menino-namoradeiro". Mamãe sempre trocava a fralda e dava o banho e papá. Papai ia trabalhar fora.
    Cresceu um pouquinho e foi pra creche. Tinha que ser o dono dos brinquedos, e escolher as brincadeiras. Filho meu - dizia o pai - não pode ser mariquinha, se alguém quiser pegar o que é dele, ele não vai deixar, vai descer porrada, ele precisa ser respeitado, como homem que é. E se chorava, tinha que engolir, "homem de verdade não chora". Aprendeu assim, que ele mandava, porque era o maior, porque era o mais forte, porque era o mais macho da sala.
    Já na primeira série (que na verdade é segundo ano, mas o pai teima que, como na época dele não era assim, não tem porque ter essas frescuras agora), aprendeu que os amiguinhos mais fortinhos podiam se juntar, e assim eles comandariam o pedaço. Meninas?Eca! Aquele menino mais bonzinho parecia agir que nem uma menininha. E já era peladeiro, chutava que nem gente grande. Gente grande não, chutava que nem homem.
    Tinha coleção de carrinhos da hot wheels. Lava rápido. Autorama. Bola. Fazia karatê. Batia nos meninos que pareciam menininhas e já aprendeu que tinha que puxar o cabelo das meninas, se elas falavam grosso com ele. E mamãe comeu pó royal, a barriga dela cresceu. Ricardinho não entendeu bem aquilo, mas fizeram um outro quarto na casa, e era daquela cor de menina, rosa. E tinha flores na parede, e bichinhos de pelúcia vermelhos, rosa, lilás. Tava no terceiro ano quando a Julinha veio. Uma irmã, eca. Pelo menos ele não teria que dividir os brinquedos, nem o videogame.
    Videogame onde tinha jogos de luta e de atirar. E ele aprendeu que nem sempre os heróis tinham super poderes. Às vezes uma arma pesada e músculos bastavam, e se empenhou ainda mais no seu karatê. Na sexta série, um menino da sala, um gordinho que falava calmo, deu uma flor de presente pra ele. O pai ficou satisfeito em ir a direção e explicar que o outro menino tava agindo como um boiola, e o filho dele só tava se protegendo. E um ano depois, voltou com sorriso ainda maior quando foi explicar que o filhão gostava da Catarina, por isso tinha puxado o braço dela e dado um beijo na menina, que era uma gracinha e formava um ótimo casal com o Ricardinho.
    Ricardinho começava a gostar da ideia de ter uma irmã, agora, no primeiro colegial, porque ela tinha 8 anos, e agora ele não precisava mais lavar o prato do almoço, nem varrer o quarto; ela já era grandinha e podia fazer isso, como a boa moça que era, seria uma boa mulher. E também varria a casa e até recolhia a roupa que ele largava no chão do quarto, como uma boa caçula.
    E logo chegou vestibular, onde ele escolheu um curso de respeito, numa universidade noutra cidade, ia ser engenheiro mecânico. Esses cursos de exatas, principalmente esse, que os meninos tem mais facilidade, uma visão mais fria. E quando voltou pra casa, veio com a namorada da facul, que prontamente ajudou a mãe a retirar todos os pratos da mesa do jantar de apresentação do namorado da irmã. Treze aninhos, tão nova, e com aquele macho de 15 anos - não, ele não ia encostar a mão na irmã dele. Quando ela foi pegar o CD que tinha ganho do namorado, no quarto, deu uma olhada feia e não deixou o menino ir com ela - onde já se viu, essa sem vergonhice de um homem entrar no quarto da irmãzinha dele. E antes do menino ir embora, ainda tomou um sermão de Ricardo e uma severa ameaça, caso fizesse qualquer coisa além de andar de mãos dadas com a Julinha. Logo os pais foram dormir, ou tentar, porque o barulho do Ricardo transando incomodava demais, de tão alto que estava.
    Dois meses depois, a namorada do Ricardo descobriu que tava grávida. "Ou tira ou te mato, não vou deixar você estragar minha vida, quero virar engenheiro". E o pai do Ricardo pagou o aborto.
    Ricardo logo era engenheiro, e sua irmã tava no terceiro namorado. "A vergonha da família, onde já se viu ficar andando por aí, com essas roupas? E olha isso, já deu pra dois. Que vergonha dela, não vai achar ninguém que preste". Quando descobriu que uma amiga da irmã estava grávida, aos 16: "puta é assim mesmo, fica dando, engravida".
    Ricardo foi fazer uma especialização, e ia de carro pra faculdade. Fazia questão de buzinar e mexer com as moças, sempre que passava perto.
    Certa vez ele viu uma moça saindo do posto, na esquina da faculdade; era a balconista. Resolveu fazer uma brincadeira e passou com o carro devagarzinho, ofereceu carona. Velho conhecido, frequentador do posto, ela aceitou e entrou. Ele parou o carro, fez uma proposta indecorosa, puxou ela pelos cabelos e arrancou a roupa dela e comeu a moça, ali mesmo, enquanto ela chorava. Bem, ele tava tranquilo. Quem ia acreditar numa balconista de bar, que morava na periferia, perto dum mestrando daquela universidade pública tão conceituada? Ela até registrou B.O., mas ninguém tinha visto nada, e ele sabia que ia contar aquela história pros netos, com o maior orgulho.

    E na multinacional, que Ricardo trabalhava, aconteceu uma seleção pra gerência do setor. Quando descobriu que na final sobrou ele e uma moça, já soltou "Ah, é pra ser chefe. Mulher não tem sangue frio pra isso, são sentimentais demais. Como ela vai demitir alguém?". Ela reclamou que era machismo aquilo. "Machista? Eu? O machismo oprime os homens, tenho que pagar conta, ir pra guerra! Eu não sou machista, só tô falando a verdade!".
    ...
   

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Sobre feto e afeto

    Queria falar sobre isso alguma hora. Não achei um momento propício, mas andei pensando a respeito, então resolvi pontuar as ( minhas poucas) ideias. Então vamos lá, falar sobre um tema tão delicado quanto possível: aborto.

A putinha aborteira
    Costumeiramente a mulher que aborta é estereotipada como a chamada "putinha  aborteira", uma moça na casa dos 16-25 anos sexualmente livre que agiria de maneira inconsequente e transaria com todos (e todas), sem os devidos cuidados (chamado de sexo seguro, utilizando preservativo - masculino ou feminino), que engravidaria e abortaria com alguma frequência.
    Uma pesquisa realizada em 2010, na UnB, em parceria com o Instituto de Bioética, financiado pelo Fundo Nacional de Saúde, com mais de 2 mil mulheres (brasileiras, 18-39 anos) mostra uma outra figura desta mulher que aborta. 64% das mulheres que abortaram eram casadas. 81% delas já é mãe de pelo menos um filho. Um quarto ganha até um salário mínimo, 31% de 1 a 2 salários, 35% de 2 a 5 e ~10% acima de 5 salários (então a faixa gorda dessas mulheres apresenta uma faixa de renda suficiente para sustentar - não necessariamente com qualidade - um filho a mais). Cerca de 60% tem de 30 a 39 anos.
    E não pense que é coisa de atea. 88% das mulheres que abortam, tem religião, e dentre essas, 65% católicas, 25% evangélicas. Então mulheres balzaquianas, com alguma faixa de renda e religiosas são o perfil médio das "putinhas aborteiras".

Aborto e a mulher: questão de saúde pública
    Quando temos um problema de saúde pontual, em uma região (bairro, cidade), é um caso isolado. Se ocorre num determinado nicho populacional, como uma determinada faixa etária, ou classe social, ou população de uma região grande, é um caso que precisa de alguma atenção, uma certa atuação do poder público com políticas específicas. Quando é um problema generalizado, é um caso de saúde pública.
    No estudo proposto por Greice Menezes; Estela M. L. Aquino, no Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, apresentou um índice de mortandade de quase 12% das grávidas por conta de abortos.
    Cerca de 1/3 dos leitos obstétricos do país estão ocupados por mulheres que sofreram complicações com abortos inseguros. E elas ocupam esses leitos por muito mais tempo do que partos normais ou cesarianas. A estimativa é de cerca de 20% das mulheres do país terem realizado aborto. Jefferson Drezet,
ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA), aponta que no Brasil ocorrem cerca de 1 milhão de abortos e 250 mil internações por ano, por decorrência de abortos inseguros, sendo a maior causa de internações obstetrícias no país.
    De cada 5 abortos, 2 são realizados de maneira totalmente insegura (isso inclui inserir agulhas de crochê pelo canal vaginal, até o útero, entre outras práticas dignas de um açougue).
    Um aborto clandestino seguro tem seu custo entre 2 e 5 mil reais, dependendo do local e do estágio de gravidez, apresentando altos riscos para a mulher que o realiza. Esse montante destinado ao procedimento torna-o, por muitas vezes, inacessível à mulher pobre, da periferia, que acaba optando por métodos com cara de filme de terror, causando um ônus absurdo a saúde da mulher, daqueles que vão custar 100-500 reais, coisa que com muito esforço o salário mínimo vai pagar (lembrando que um filho sai muito, mas MUITO mais caro que isso, mensalmente, até pelo menos 18 anos).
    A criminalização do aborto dificulta o tratamento, uma vez que muitas das mulheres que chegam em hospitais com hemorragias não dizem ser por conta de abortos, mas claramente tem-se neles a causa das complicações. 
 
Aborto criminalizado X aborto regulamentado
    O aborto é legal nos seguintes países:

África do Sul
Albânia
Alemanha
Armênia
Áustria
Azerbaijão
Belarus
Bélgica
Bósnia
Bulgária
Camboja
Canadá
Cazaquistão
China
Coréia do Norte
Croácia
Cuba
Dinamarca
Eslovênia
Estônia 
França
Geórgia
Grécia
Guiana
Guiana Francesa
Hungria
Itália
Laos
Letônia
Lituânia
Luxemburgo
Macedônia
Moldávia
Mongália
Montenegro
Nepal
Noruega
Porto Rico
Portugal
Quirguistão
República Tcheca
Romênia
Rússia (desde a época da URSS, legalizado e totalmente custeado pelo governo desde 1920)
Sérvia
Suécia
Suíça
Tadjiquistão
Tunísia
Turcomenistão
Turquia
Ucrânia 
Uruguai
Uzbequistão
Vietnã

  O Uruguai é o caçula dessas nações aí, em dezembro 2012 (pelo lindo do Mujica <3 ). Antes da legalização do nosso hermano, a taxa estimada era de 33 mil abortos por ano, caindo pra menos de 6700, no primeiro ano após a regulamentação. E nenhuma morte. 50 mulheres apresentaram complicações leves que tiveram que passar um período de até 24h no hospital. Os demais casos não houve nenhum tipo de sequela ou problemática.
    Para entender melhor como nosso hermano maconheiro e abortista funciona: o aborto até 3 meses (~12 semanas, antes do feto começar a desenvolver uma rede neural, que virará o sistema nervoso, portanto não pensa nem sente nada). A mulher que opta pela realização do aborto é então dirigida a uma série de orientações, onde vai entender o procedimento e depois por uma triagem pra avaliação psicológica e começar o tratamento psicológico. Note que essas medidas reduziram o número de abortos pra cerca de 20% do que era, anteriormente.

O aborto e o direito reprodutivo
    Vale lembrar que as medidas voltadas ao aborto fazem parte do direito ao planejamento reprodutivo da população, que é o direito do indivíduo escolher como e quando se reproduzir. Para se ter acesso aos métodos, além da possibilidade de ter o preservativo, o anticoncepcional ou qualquer outro método, é preciso saber como utilizá-lo. Temos, em nosso país, plena distribuição de camisinhas (masculinas), mas grande parte da população sequer sabe como utilizar (sério, muita gente acha que só põe na hora de gozar, ou ~tenha criatividade e imagine absurdos~ e pronto, terá de tudo), além do peso da religião em evitar o uso de tais recursos. Nas escolas o sexo é tido como tabu, e a orientação sexual é muitas vezes evitada, ou explanada de maneira muito superficial, o que agrava a situação da má utilização de camisinhas ou anticoncepcionais.
    Enquanto o país não tiver uma metodologia de aplicação 100% eficaz dos métodos contraceptivos, não se pode cobrar uma postura não abortiva. É burra por definição essa tomada de decisão. A pessoa tem que ter o total controle de quando quer se reproduzir, por estar em condições financeiras, psicológicas e de carreira de criar uma criança. E sim, acidentes acontecem SIM.
    E só pra dar um toque: querendo você ou não, os abortos vão continuar acontecendo. Quer ser pró-vida, seja a favor da legalização, que sempre resulta em diminuição da mortandade (se a mãe morre a criança não desenvolve, né, gentem...), então sai pra lá com esse papo de pró-vida.

O aborto e a sociedade (machista)
    Quanto à condenação do aborto, perante a sociedade, não é preciso frisar que é uma conduta machista, né? Mas o que esperar de um país ocidental com uma formação cristã (e uma bancada nada laica no Congresso)  como o nosso? A igreja católica já é machista pra caramba, tanto pela parte hierárquica quanto pela sua construção política que visava quebrar o lance da mulher empoderada das religiões pagãs. Tanto é que Papai do céu é homem - e não fala com nenhuma mulher ao longo da bíblia inteira, né.
    A sociedade condena a mulher que opta por não ser mãe, chamando-a de homossexual e tal. Ou faz uma pressão imensa para que toda mulher seja mãe. O que não acontece com uma mulher que desiste de ser mãe, carregando um feto? Enquanto o homem que opta por não ser pai é ok, desde que pague pensão. E quando pai, nem precisa participar na formação da criança.
    A condenação do aborto é dada por esse caráter machista da nossa sociedade, o que precisa ser urgentemente alterado. Ou que os ""direitos de cidadão de bem"" sejam iguais, e o pai que abandona seja violentamente execrado e humilhado socialmente, se o fizer (não desejo isso nem prazinimiga, quero mais que todo mundo seja feliz e abortivo mesmo).
    Num cenário hipotético onde haja pleno acesso a todos os tipos de métodos contraceptivos 100% eficazes, e não houvesse violência contra a mulher, para que ela pudesse escolher quando engravidar, o aborto seria desnecessário. Enquanto essa utopia não for atingida, o aborto NECESSITA ser legalizado com a mais breve urgência.

     Chegamos num ponto onde tá rolando aquele lance de estuprador assumir como pai, ter q dar pensão e ainda por cima ter direito a visita da criança, que obviamente, enquanto feto, não poderia ser abortada. Barbárie, né, gente.

    Não pretendo tratar dos aspectos psicológicos da mulher nesse texto (por não ter conhecimento e se fosse pesquisar o texto ia ficar demasiadamente longo e ninguém ia ter pachorra de ler), nem do cenário do estupro ou cultura de estupro que rola por aí (fica pra um texto futuro), então é isso. Acho que tem que legalizar sim, querendo religiosos ou não, porque uma postura dogmática pode e DEVE ser contestada, principalmente quando os números estão totalmente contra as afirmações deles e da sociedade que se embasa nesses conceitos pra dialogar. Enquanto houver morte e violência contra mulheres, a coisa precisa ser combatida

terça-feira, 17 de junho de 2014

Vão se foderem

    Recentemente um cara que eu considero muito inteligente e conciso me atentou pra um fato que tinha passado desapercebido por mim, esses anos todos - e provavelmente da maioria da galera (quero acreditar que, pra não me sentir bobinho demais): palavrões são nocivos, socialmente falando.
    Como assim? Bem, vamos lá.

    Filho da puta, vagabunda, vadia, vai tomar no cu, vai se foder, puta, viadinho, corno, cotoco, perna-de-pau, cuzão, virjão, cabaço, retardado, lesado, filho duma descabaçada, filho duma rapariga, bichinha, baitola, pau no cu, cachorra, cadela, piranha, rabudo, moleque, remelento, chifrudo. Xingamentos comuns, que usamos no cotidiano, soltamos sem pestanejar, quando batemos o dedinho do pé na quina do móvel ou quando estamos bravos com alguém.
   
    Usamos termos muitas vezes ligados a uma condição ou gênero da pessoa. Muitas das ofensas são ligadas à sexualidade da mulher e trabalhando nelas de maneira pejorativa. Vadia, vagabunda, puta, filho da puta. Mesmo quando queremos ofender a pessoa, ofendemos a mãe. Ou se queremos xingar um homem, é corno, é viado. A culpa é da mulher. Ou dele gostar de homens.
    Se comete algum erro leviano, é virgem, cabaço. Como se transar fosse um ritual de passagem onde as pessoas magicamente se tornassem mais sábias e competentes. Pffffff. Além de tudo, mais uma vez, a culpa voltada à sexualidade. Não tá de saco cheio de ficar regulando a foda alheia não? Deixa a galera trepar a vontade e ser feliz, larga esse recalque de lado e vem pra esse rolê mais festivo!
    E o popular vai tomar no cu e suas derivações, como o 'vai se foder'. Conta pra gente, aqui: quem que pratica sexo anal? Homem hétero que não é. É mulher e homem homo. E o termo é usado como ofensa - ou seja, coloca em posição de inferioridade quem pratica (dica, gente: isso é machismo). Como o que aconteceu com nossa presidentA, em episódio recente, quando um grupo puxou, em coro, um xingamento desses - que infringiu em alguns pontos da Constituição Federal E Código Penal (então é crime, gente!). Só demonstrando como nossa sociedade pode ser bem preconceituosa. Quer discordar da Dilma? Critique sua política, suas decisões. Se ela der o cu, o problema (ou prazer) é todo dela, e vocês não tem que regular a foda da pessoa mais poderosa do país!

    E antes que digam que isso é mimimi, que é frescura, vai um puxão de orelha: não é. É uma série de preconceitos que são tão enraizados que não notamos essas ""sutilezas"", tornou-se comum oprimir. Se queremos ofender alguém, que ofendamos sua conduta real, e não usemos termos que perjorem sua imagem por usar termos ligados a gêneros, orientação sexual ou etnia. Quer xingar alguém? Chame de hipócrita, tapado, bobo, feio, chato, cara de mamão, olavete...
    A língua é a expressão máxima da cultura de um povo, é como a gente se comunica, como passamos todas nossas mensagens, transmitimos conhecimento e noções da sociedade. Lutar contra essa cultura de estupro, homofóbica, etc etc é nosso dever. Dizer que é pra deixar de lado é como dizer que o racismo vai se extinguir por não falarmos nele - e daí caímos nesse racismo velado que vemos no nosso país, onde ninguém é racista, mas boa parte da galera muda de calçada quando vem um negro na sua direção.
    Fica a dica pra repensarmos nesse lance de palavrões. E aceito sugestões de novos xingamentos, isentos desse cunho preconceituoso, preciso refazer meu vocabulário :)

terça-feira, 13 de maio de 2014

Do Esquerdopata

*** Este texto tem cunho muito mais emotivo-reflexivo do que uma sequência lógica de pesquisas, como outros textos do "brógue"***

    Primeiramente bom dia. 

    Acho válido abordar o tema da "esquerda" e "direita" de uma maneira mais sutil, talvez escrevendo algo mais denso depois, mas a ideia é explicitar o porquê de ter escolhido "o lado vermelho da força". 
    Acho demasiadamente superficial chamar a esquerda de socialismo e a direita de capitalismo, até porque são duas ideias meio cruas, a serem coloridas com tantas nuances a serem preenchidas que a coisa fica complicada de ser delimitada como um sistema econômico, "somente". Não se trata só de economia.
    Certa vez, numa dessas conversas de boteco, com um bróder que considero muito sapiente em suas colocações, me foi apresentado um panorama bem interessante sobre ser "de esquerda" ou "de direita": "se é a favor do sistema, você é de direita; se é contra, você é de esquerda". Foi o que o Wel disse. 
    Acho que ouvimos tanto que precisamos ser pessoas direitas na vida, que precisamos seguir a conduta social, que precisamos estudar, casar, ter filhos, comprar uma casa, plantar uma árvore, escrever um livro - e não necessariamente nesta ordem. Mas casar precisa ser antes de ter filho, porque sexo só depois do casamento. Qualquer coisa aperta a barriga da noiva com espartilho pra esconder a criança que tá crescendo ali. Pena de morte, redução da maioridade penal, esconder renda pra pagar menos imposto (que o governo 'rouba' demais)? Perfeito, totalmente legítimo. Aborto, respeito ao corpo da mulher, educação de qualidade para todos, oportunidades iguais a todos os cidadãos, casamento para pessoas do mesmo sexo, bolsa-família? Ah, isso é coisa de esquerdopata, é privilégio, é vagabundo querendo viver às custas dos outros que trabalham pra valer.
    O problema maior em ser um "cidadão de bem" é justamente essa capacidade que ele se põe de enxergar sua vida como a única realidade plausível e possível. Os pais dele eram pobres e batalharam, deram condições para que ele estudasse. Trabalhou desde pequeno, sabe como é, não é um 'vagabundo', trabalhou duro para ter o que tem hoje. E vive numa bolha. Acontece que vivemos em uma sociedade. É tipo um monte de bolha, uma grudada na outra - e se virmos isso de longe, é uma espuma (tipo quando aperta uma esponja de lavar louça com detergente e sai a espuminha branca, saca?). Daí acontece uma coisa meio diferente. Uma unidade é diferente do todo, as propriedades mudam, sacomé. E isso não acontece só nesse caso, é mais ou menos algo universal: uma partícula de carga q tem um comportamento; se submetermos a todo um campo eletromagnético, as coisas mudam bastante; ou um aminoácido, no meio de uma proteína, a coisa muda. Ou uma molécula de gás, no meio de um sistema inteiro. Fugindo do micro, indo pra 10¹: rebanhos de animais, manadas; no macro, temos correntes oceânicas, convergência de ventos - e saindo do planeta, ainda temos toda a estrutura do universo baseada em interações. Me diz qual a lógica que tem em um cidadão achar que a verdade dele é a única e que seu sucesso e sua vida dependem apenas de seus esforços, quando O RESTO DO UNIVERSO tá mostrando que tudo depende da interação? Osso, né, galere.
    Bem, partindo do pressuposto lógico, de que convivemos em sociedade e que o rumo que esta toma nos afeta diretamente, fica o questionamento: 
 "Você está de acordo com como as coisas estão, ou acha que tem muita coisa errada por aí?"
    Desculpa, mas ninguém tá contente com o modo que as coisas são conduzidas, hoje em dia. Então por que propagar o erro? Por que continuar agente mantenedor desse sistema caótico? Por que não mudar algumas diretrizes?
    O erro mais comum que consigo enxergar (em mim e) em todos é o de não nos colocarmos no lugar do outro, a falta de empatia pelos demais. Temos uma preguiça crônica de virar o pescoço e olhar pra bolha ali do lado, e ver que dentro dela tá faltando comida, dignidade, acessibilidade à toda e qualquer coisa que pode nos estar sobrando.
    São pretos pedindo para que não haja mais discriminação, do meio acadêmico ao esporte; são gays pedindo o direito de seus gostos serem respeitados, sem que sejam agredidos; são mulheres pedindo dignidade às suas pessoas, seus corpos, seus salários; são pobres pedindo que finde a exploração para que ricos se sustentem num luxo incoerente; são religiões (maior parte não cristã) que tem seus altares e crenças destruídos; são índios sem ocas; são peões sem terra; são quilombolas sem chão; são craqueiros sem dignidade... São tantos direitos negados a tantas pessoas... E a conduta que rege essa nossa levada só resulta num caos, na extinção de todos nós. Não podemos ser coniventes com a destruição do próximo, porque o próximo somos nós mesmos!
    Somos ensinados a rechaçar o diferente, mas ninguém aqui é igual, todos temos nossos traços e nossos perfis. Não podemos travar uma guerra contra nós mesmos. Precisamos da empatia com o próximo, para desconstruir esse sistema nervoso e nocivo que nos julga e condena. Uma justiça imperfeita regida por sentimentos de ódio e intolerância, uma competitividade ensinada desde que nascemos.
    Por isso sou de esquerda. Não concordo com esse ritmo caótico que não nos quer por aqui. Discordo de como as coisas são carregadas, empurradas com a barriga. Não quero que nossos preconceitos nos destruam, não quero que tenhamos privilégios sobre os demais, baseando nosso luxo na miséria. Não quero que alguém derrame lágrima pra desenhar meu sorriso (nem azinimiga). Quero que as pessoas sejam respeitadas pelo que são, que as oportunidades sejam iguais. Que tenhamos todos os mesmos direitos e privilégios.
    Pode chamar de esquerdopata, pode chamar de petralha, pode chamar de esquerdista. Sou mesmo. E com orgulho. Quando o sistema for o amor e o respeito, aí eu serei de "direita" ;)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Minha posição definitiva (até o momento - huehue) sobre cotas.

    Bem, um dos assuntos mais discutidos nessa onda de pessoas pseudo-politizadas (entre as quais eu me incluo), e um dos debates que gera maior hostilidade - e talvez desonestidade em ambos lados na obtenção de informações, além da parcialidade. Então o que colocarei aqui é um compilado de informações e pontos de vista que retratam o que e como penso, assim, da próxima vez que houver um debate, ao invés de longos diálogos e exposições de ideias - que já estou cansadão de debater, e não achei argumentos forte o suficientes pra alterar meu ponto de vista - serão despejadas na forma deste texto. É de se esperar que seja orgânico, e sempre haja atualização, conforme amadurecer mais e mais.
    Estou sempre aberto ao diálogo e sugestões, então, por mais que meu posicionamento seja diferente do seu, camarada, peço o favor de apresentar contrapontos consistentes e que já não estejam embasados aqui, ok? =D
    Dica: será longo e doloroso, tenha paciência e mantenha o foco.

  • Sobre a proporção da população
     No Censo do IBGE de 2010, pela primeira vez na história do país, tivemos uma maioria não-branca no país. Em 2000, 44,7% da população se declarava preta ou parda. Em 2010, onde participei como recenseador, tivemos um total de 50,7% da população declarada preta ou parda. Isso demonstra uma maior miscigenação ou maior nascimento de pretos/pardos? Não. Isso mostra que as pessoas se declararam mais pretas ou pardas. 
    No treinamento para recenseador, fui orientado a nunca induzir uma resposta, apenas expô-la da forma como era feita. A pergunta sobre cor era assim:
 *Fulano* se declara: (onde fulano era o nome da pessoa, já que você registrava o nome dos habitantes da residência)
( ) Branco
( ) Preto
( ) Pardo
( ) Amarelo
( ) Vermelho

E se a pessoa perguntasse o que eu achava, eu só dizia: a pergunta foi feita, o senhor/senhora quem escolhe, de acordo com o que achar. E, como já foi dito por várias pessoas, o conceito de cor é algo muito volátil. Eu posso facilmente ser considerado preto, se morasse em uma cidade onde a predominância é de descendentes alemães, como seria, com certeza, dito branco, em Salvador, onde a população majoritariamente é negra. Então notamos que é algo muito sensível.
    Podemos ler o texto onde estes 5 grupos étnicos foram separados, segundo o IBGE em ( http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf ). 
    Notei, nesse espaço amostral, que muitas pessoas com tom de pele mais escuro que o meu se declararam brancas - e vocês que me conhecem sabem que eu não sou exatamente branco - enquanto pessoas com tom de pele similar ao meu - ou até mais claro - se declararam pretas; notei que houve um GRANDE preconceito por dizer preto, que é o modo de exposição feito no palmtop que nos foi concedido. Era negro. Não preto. Mas o branco era branco, não caucasiano... Mais sobre isso será discutido a frente.
    Outro ponto interessante nessas declarações é que muitas se baseavam no cabelo. Se fosse carapinha, era preto. Se era liso, branco. Muitos evitavam o pardo.

    Voltando à temática: nota-se que uma maior parte dos brasileiros se declarou preta/parda. E aí podemos ter acesso a um outro dado, interessante:
    Segundo IBGE (2007), tínhamos 5,6% dos brancos da população cursando ensino superior, enquanto 2,8% de pretos/pardos.
   Como fica difícil reunir dados mesclados de universidades públicas estaduais e federais, usarei apenas as federais, já que apresentam maior representatividade em espalhamento no território nacional, ok?
    O número de pretos e pardos nas universidades federais era, antes das cotas, de 34%, perto de uma população que representa 50,7% da população brasileira. Como um geral (estaduais, federais e privadas), as cotas forçaram um aumento de 34,2% de pretos e pardos para 40,8%, o que ainda gera uma hipo-representatividade, onde os brancos, que representam 47% da população brasileira, detém 56% das vagas das universidades, ou seja, uma hiper-representatividade. Valendo-se do preconceito com asiáticos, cerca de 2,1% da população se declara amarela, e quase 4% dos estudantes do nível superior são asiáticos. 
    De qualquer maneira, vemos que as cotas tiveram um impacto sensível, que já demonstra uma mudança no panorama geral das universidades. Ainda assim, vemos que os percentuais estão BEM desbalanceados na relação brancos e não brancos na população geral e nos alunos do nível superior.

  • Desempenho dos alunos cotistas
    É curioso analisar, quando pesquisa-se o tema desempenho dos cotistas. Lembrando que as cotas, aqui tratadas, são as gerais - tanto para alunos de escola pública quanto para negros alunos de escola pública. Se pegarmos notícias de fontes como Veja! ou da Folha de São Paulo, teremos um panorama negativo dos cotistas (a mesma Folha que deu uma dessas: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/10/1352429-renda-maior-do-trabalhador-come-lucro.shtml). Mas ao verificarmos dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), um órgão federal vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, demonstra outro parecer:
    As cotas representam 12,5% das reservas de vagas. Como estatísticas ainda não puderam ser construídas com as federais, apresento os dados da Unicamp e da UnB, universidades que apresentam sistema de cotas há mais tempo. 
    Em 31 dos 55 cursos da Unicamp os alunos cotistas apresentaram um Coeficiente de Rendimento igual ou superior à média, bem como em 11 dos 16 cursos da UnB. Embora na UnB o índice de aprovação dos não-costistas tenha sido superior (~93% contra 88,9% dos cotistas), o índice de trancamento (quando você se desliga de uma disciplina, iniciando-a em outra oportunidade) entre costistas foi de 1,73% contra 1,76% de não-costistas. Índices que representam a mesma realidade, no que se refere a trancamento de matrícula, da Unicamp.
    Ou seja: vemos que o desempenho dos cotistas NÃO é inferior ao dos não-cotistas. (Primeira derrubada de argumentos sobre 'cotistas não terem capacidade por terem sido empurrados pra dentro').
    Já a Folha demonstrou que as notas dos cotistas é menor no ENADE. O que será discutido mais a frente. Mas é uma vergonha, convenhamos.

  • A realidade universitária no país
    A pergunta é: por que você quer um diploma? Quantos vão responder que é para aprender? Não sei. Mas tenho certeza que a grande maioria está no ensino superior para descolar um emprego melhor. O diploma deixou de ser um diferencial e tornou-se algo básico que todos tenham. Aí reside a falha - que será discutida mais à frente - o que será discutido, agora, será a consequência dessa hipervalorização do diploma.
    O Brasil apresenta 12% da população detentora de diploma de curso superior. Perto do nosso quase vizinho Chile (25%) da população, índice próximo aos países nórdicos. O recorde é da Rússia, com mais da metade da população diplomada. Sim, no Brasil temos pouquíssimos diplomados, o que gera uma hipervalorização daqueles que o tem. É o que acontece quando a procura aumenta, loucamente.
    Notemos que o enfoque de uma universidade pública, entretanto, não é o mercado de trabalho, e sim o tripé básico de pesquisa - docência - extensão. Formação de tecnicistas é secundária. Quem assume a responsabilidade de formar profissionais para o mercado de trabalho são as faculdades e universidades privadas, que, segundo o MEC, receberam em 2012 73% das matrículas do ensino superior no país. As instituições de ensino superior privadas vem crescendo em número. Segundo a revista The Economist (2012), das cerca de 2400 universidades do Brasil, 10% são públicas e 75% são instituições particulares com fins lucrativos. Você paga a faculdade, você ganha o diploma - e não necessariamente aprende alguma coisa no meio termo. Sendo sim generalista, pois poucas são as universidades privadas que tem recursos próximos às públicas e que tenham a condição de manter um nível de ensino razoável. 
    Pesquisa do MEC revela que 38% dos universitários podem ser considerados analfabetos funcionais. Isso é grave. Pergunta qual a proporção destes em universidades públicas? =)
    O ponto crucial da coisa é a metodologia utilizada para avaliação dos cursos superiores. O ENADE. Para quem enxerga de fora, pode parecer algo justo e sensato. Mas não o é. É uma prova banal, onde analisa-se um nível ridículo de conhecimento. 
    É comum, durante cursos universitários, a presença de disciplinas eletivas, que são disciplinas que o aluno pode escolher uma área do conhecimento para estudar melhor. Muitos amigos meus se beneficiaram e aprenderam muito com tais disciplinas eletivas, na Unicamp. Mas a realidade é outra, quando analisada em algumas universidades privadas: este espaço destinado à aquisição de conhecimento é transformado em um "cursinho pré-Enade", onde, como as provas do ENADE apresentam um formato constante, os professores dão um treinamento para que os alunos apresentem bom desempenho nesta avaliação. É mais ou menos como um vestibular: a pessoa não precisa necessariamente saber, ou saber como utilizar, ela só está reproduzindo um conhecimento (conhecimento não é capacidade ou inteligência) - isso será discutido mais a frente (pra variar um pouco - e cansar mais o leitor, desculpa o/ ). E os alunos que tem a melhor nota no ENADE ganham MBAs, formações continuadas, brindes, livros, etc. Aí você pode perguntar: e qual o mal nisso? Coleguinha, isso é crítico. Você tá substituindo a formação técnica de uma pessoa por um amontoado de informações, uma decoreba só. E aquele curso, que era ruim, mas teve um bom pré-enade, acaba sendo aceito pelo MEC com notas altas. 
    Pasme - os cursos mais afetados por este sistema são aqueles referentes à formação de docentes da educação básica - e cada vez temos professores piores para o ensino fundamental e médio - e profissionais, num geral, menos competentes. Tirando as dúzias de resoluções do MEC que visam deixar os cursos iguais em competências, mas sempre nivelando por baixo, nos catálogos mínimos. É a indústria do diploma, que gera um "lucro" grande ao Estado, por apresentar maior número de pessoas no ensino superior, e ganha um dinheiro bruto em cima dessas universidades privadas.
    Logo, o problema da formação básica vem sim, parcialmente, daí.
    O comum é que, com essa proliferação de universidades que brotam por aí mais rápido que lojas de fast-food, sem estrutura necessária, com preços de mensalidades baixíssimas, acaba atendendo às camadas mais pobres da população que, como veremos a seguir, tem cor sim. E gera uma segregação forte entre faculdades privadas de ricos, universidades públicas excelentes e um grupo de faculdades com baixa qualidade, para as classes C, D e E. Segregação sentida fortemente quando se diz respeito ao mercado de trabalho.

  • A diferença sócio econômica de acordo com a cor da pele
    Começando o enfoque às cotas voltadas aos negros, talvez aconteça certa demagogia, mas tentarei evitar.
    O ponto crucial do programa de cotas por cor de pele começa a ser definido a partir deste padrão.
    A seguir, uma tabela de comparação entre os rendimentos, nas regiões metropolitanas, de negros e não negros, no biênio 2011-12, pelo DIEESE:
    Note que o rendimento do negro, na média, é de ~64% o de um não negro. Ou seja, negros ganham 64% do que brancos ganham.
    Outro fato marcante, considerando o fato da idade típica do universitário ser entre 18-30 anos, é o índice de criminalidade que aflige a juventude. Segundo o Mapa da Violência 2012, temos  que 71% dos jovens mortos eram pretos ou pardos. Outro ponto importante é que, de 2010 pra 2012, o índice de brancos mortos reduziu 25,5%, enquanto o de negros aumentou em 35,3%. Isso aponta uma tendência da violência social, característica básica de regiões periféricas.
    Dentre os miseráveis (IBGE, Censo 2010) (pessoas que tem renda mensal abaixo dos R$70,00), 71% são pretos ou pardos. E 51% tem até 19 anos. A proporção de homens e mulheres é praticamente a mesma (algo bem próximo de 50-50%). Dentre a linha que está aquém da extrema pobreza, o perfil pode ser fielmente repetido. Com isso temos a ciência de que a maioria dos pobres é constituída por pretos e pardos.
    O que temos, entretanto, é uma fatia da população constituída por brancos e pobres, o que nos leva ao questionamento que muitos dos que contestam as cotas costumam fazer:

     E aí que atingimos o ponto crítico, que é o chamado Capital Cultural.

  • O capital cultural (e suas consequências universitárias)
    O conceito de Capital Cultural foi proposta (pelo que eu saiba) por Pierre Bourdieu, que tem uma certa interação com o conceito de classes proposto por Marx. Esse capital cultural seria um 'poder' intimamente ligado à educação, embora irrestrito a ela. 
    Dentro de uma sociedade, é claramente identificado quem pertence à elite, pela condição financeira e poderio econômico, o capital material. Esta camada mais abastada da sociedade possui uma série de hábitos, de costumes, crenças, comportamentos, tendências, expressões culturais ou mesmo gírias - e até a aparência. É uma fronteira que Bourdieu traçou como a separação entre os "nobres" e os "meros plebeus", e seria uma força (esse tal capital cultural) quase tão poderosa quanto o próprio capital financeiro.
    Dentro desta conjuntura social, denominada capital cultural, a de se observar que àqueles que tiverem maiores semelhanças aos hábitos desta elite, apresentam maior capital cultural, o que leva estes indivíduos a terem maior apreço social em todos os ramos da sociedade. Uma hierarquização do gosto da população. E da aparência. Podemos ver a expressão do estereótipo tomado como global ideal representado em novelas, revistas, propagandas. Num marketing, como um todo. E a Cultura Pop (leia mais sobre num texto antigo, aqui do blog: Cultura de Massa) é tomada como a diretriz do que é bom e correto ser ouvido, seguindo ao interesse da elite vigente.
    Para não estender muito no conceito, vamos ao vestibular: uma coisa é um fato impossível de se negar - o vestibular é um sistema ineficaz que não analisa a capacidade intelectual do indivíduo, e sim uma quantidade determinada de informações que foi absorvida e "assimilada" pelo aluno - e não propriamente a competência de absorver uma informação e aplicar em diferentes áreas, ou uma medida direta de inteligência/competência. E como toda análise de quantidade de informação, ela tem um enfoque, que por sua vez é dado para o conteúdo de quem tem maior capital cultural.
    Um exemplo bem básico de como isso acontece, no ensino, é se analisarmos a disciplina história. Vemos, desde nossa primeira série, um ensino de história eurocêntrico; aprendemos sobre a história da Europa desde o começo da civilização ocidental, mas é relevado todo - ou quase todo - o ensino da população oriental, como Japão, China, Índia (exceto a interação entre Índia e europeus), além de todo o continente africano, sumariamente ignorado. Não nos é ensinada a história negra. Não temos noção das tribos, de como se deu a colonização da África. E isso se estende para a formação da periferia, para a cultura negra no país. Ou a cultura indígena no país; só se fala de índios em 19 de abril.
    Além de toda a segregação social que estas duas quase que castas sociais já sofrem, pelo preconceito propriamente dito, ainda tem, num processo que deveria ser democrático de seleção de indivíduos, em relação à capacidade, uma desvantagem no cunho social. A vivência tanto que negros quilombolas ou indígenas sofrem, em relação ao ensino, nem tem como ser questionada, já que a educação deles tem um enfoque bem distinto do que é tomado como cultura formal. Mas nem precisa ir tão longe. Temos a periferia com sua identidade, totalmente desvalorizada. A sociedade enxerga o pobre como subumano, como um lixo, como algo a NÃO ser seguido (o que soa meio incoerente, visto que o país é majoritariamente cristão e o manda chuva do cristianismo pregava o desapego dos bens e todo mundo viver como igual, respeito ao próximo e tal...). E, como uma 'classe' desvalorizada, sofre com a redução de sua importância e o que sai da periferia também não será usado no vestibular. O que aprendem nas escolas públicas é algo superficial, do aspecto da cultura formal, então saem prejudicados - e não é pouca coisa não - ao que se trata de conteúdo de vestibular.
    Pelo outro lado temos uma estreita fatia da população que concentra maior parte da renda do país, e os frutos dos pais que concentram o dinheiro (o lance de 10% da população deter 50% do PIB), que já tem sua cultura tida como a formal, seu capital cultural já é o mais valorizado, sua verdade já é a universal, ainda tem o empurrão de um vestibular que cobra o que essas crianças aprendem na escola. E no cursinho. Cursinho que os pais pagam de 1000 a três mil reais por mês, para o filho engolir o que já viu na escola desde a primeira série, que é a verdade dele. Três mil reais é o que uma família da periferia tem, às vezes, 3 a 4 meses para a CASA inteira se sustentar, das classes C e D, no país.

  • Pobres e brancos
    Chegamos ao segundo ponto crítico. Do mesmo modo que não se pode negar que haja preconceito, não se pode negar que haja brancos pobres. Temos, hipoteticamente falando, 29% da população na extrema pobreza, branca. E a proporção se mantém entre os pobres. Deve, entretanto, entender que muitos dos pretos e pardos, por uma  vergonha, por uma falta de incentivo, acabam por não se declararem negros, além da relativização, já mencionada acima, sobre ser branco ou preto.
    Um texto bom sobre essa falta de paridade pode ser conferido em (IPEA, diferenças entre negros, pardos e brancos). Podemos, pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2010, notar que o salário médio do branco, em relação ao do preto e pardo, é de mais de 46%. Um branco tem um salário médio 46% maior que de um não-branco - inclusive para cargos similares. Ou seja, um negro ganha 70% do que um branco ganha. O branco pobre acaba por ser menos pobre que o preto pobre. Analisando o IDH da população branca, brasileira, teríamos um índice de 0,814, 44ª no ranking mundial. A população dos não-brancos teria IDH de 0,703, e ficaria na 105ª posição, ao lado de El Salvador.
    Além de ter o capital cultural favorecido.
    Como assim? Na época da escravidão, os negros escravos eram tomados como vagabundos e desleixados, e essa cultura foi propagada até os dias de hoje, com aqueles dizeres "quando não faz na entrada, faz na saída", "tinha que ser preto" e daí pra pior. Não se trata de uma reparação história, propriamente dita, mas de um conceito que quem tem uma pele mais escura tem menos capacidade. Isso é tão tomado como uma verdade subjetiva, no âmbito social, que se analisarmos o índice de desemprego, bate à porta dos 10% entre os negros, enquanto dos brancos (IBGE, 2010), está na casa dos 6%. Houve casos onde negros foram cortados de dinâmicas para grandes empresas sem maiores justificativas, após apresentarem um desempenho maior que a média dos brancos. É um racismo intrínseco que ceifa as oportunidades dos negros. Então, sim, temos brancos pobres, mas estes tem uma maior chance de 'crescimento' dentro do nosso sistema do que o pardo e principalmente o negro, que já é olhado com desconfiança. Por isso inviabiliza falar em cota social, porque o contexto social é diferenciado. E não é uma retratação histórica.

  • Resumo da obra
     Primeiro ponto a se entender: cotas são uma reserva de certa porcentagem para indivíduos que se declaram negros ou índios. Não são escolhidos ao acaso, são os que, dentre essa classificação, obtiveram melhores resultados no vestibular. Segundo ponto: é um acréscimo na nota, então, se forem  pior que os não negros, eles não vão entrar.
    A cota existe para estudantes de escola pública (afinal de contas: universidade pública deveria ser prioritariamente para estudantes de escola pública - o que não vemos hoje em dia), e há um acréscimo se este for negro/pardo, e esse acréscimo seria um modo virtual de suprir uma desigualdade em como o sistema encara o branco e o não-branco.
    Estatisticamente está comprovado que os negros e pardos são muito mais desfavorecidos em relação à capital, ao acesso à educação, sofrem mais com a violência, entre tantos outros fatores (muitos apontados acima, no texto). O que nos traz o seguinte questionamento: o vestibular é, de fato, meritocrático? Não, não é. As cotas se apresentam, portanto, como uma maneira justa - lembrando a importância da relativização neste caso - de aproximar o vestibular e o acesso às universidades de um processo democrático, onde o pobre poderá ter acesso ao ensino superior e se qualificar.
    É impossível desenvolver um programa federal que analise cada indivíduo, então trabalha-se com os grupos prejudicados, estatisticamente analisando, e com isso temos a clara noção de quem mais precisa das cotas, de fato, é essa fatia da população que sofre com todo esse contexto negativo.
    Injusto é um menino como este:

    Não poder ingressar na faculdade (à merda que ele não é muito mais inteligente que muito filhinho de playboy que vai pra engenharia mecânica), porque o professor de escola pública sofre com um salário miserável, tem uma carga horária sobre-humana e acaba por adoecer, ou não ter professores o suficiente para lecionar - além de lutar contra a corrente, porque é visto que por mais que estudem, essas crianças da periferia jamais terão o espaço e a dignidade que um branco da classe média. Então crianças como este menino aí ficam sem aulas, perdem o conteúdo do que vai cair no vestibular e não terão chance de competir com alunos do cursinho de 3 mil reais por mês.
    E se vierem falar que é só trabalhar e se esforçar mais que eles sobem na vida, lembre-se: eles estão totalmente contra a corrente, lutam com uma série de coisas que a maioria de quem critica as cotas nem imaginam. Exceções? Sempre tem. Se for falar de exceção, porque todo branquelo rico não vira um Newton, da vida? Não é só se esforçar que dá certo?
    Os dados estão aí; negros e pardos sofrem mais com a violência, tem menor acesso a emprego, etc etc etc.
    Melhorar o nível da educação básica? Sim, é a solução. Mas como fazê-lo? Isso vai ficar para outra postagem, porque é um assunto delongado.
    As cotas não são definitivas, são uma medida paliativa. Esperamos um dia não precisarmos mais dela, para termos um sistema de avaliação justo e democrático.
    Se meus argumentos não bastaram, convido você, leitor ou leitora, a participar da vida de uma comunidade da periferia por um mês, frequentar as aulas, conhecer a realidade deles.


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